ART. 1056° DO CÓDIGO CIVIL
Oiça, vizinha: o melhor
É combinarmos o modo
De acabar com este amor
Que me toma o tempo todo.
Passo os meus dias a vê-la
Bordar ao pé da sacada.
Não me tiro da janela,
Não leio, não faço nada...
O seu trabalho é mais brando,
Não lhe prende o pensamento,
Vai conversando, bordando,
E acirrando o meu tormento...
O meu não: abro um artigo
De lei, mas nunca o acabo,
Pois dou de cara consigo
E mando as leis ao diabo.
Ao diabo mando as leis
Com excepção dum artigo:
O mil e cinquenta e seis...
Quer conhecê-lo? Eu lhe digo:
«Casamento é um contrato
Perpétuo». Este adjectivo
Transmuda o mais lindo pacto
No assunto mais repulsivo.
«Perpétuo». Repare bem
Que artigo cheio de puas.
Ainda se não fosse além
Duma semana, ou de duas...
Olhe: tivesse eu mandato
De legislar e poria:
Casamento é um contrato
Duma hora — até um dia...
Mas não tenho. É pois melhor
Combinarmos algum modo
De acabar com este amor
Que me toma o tempo todo.
[E Augusto Gil, o autor da «Balada da Neve»,
foi também um dos meus primeiros poetas. Descobri
recentemente este poema de amor irónico, de um cinismo
e populismo bastante adequados ao tempo de hoje.]
Augusto Gil
in “Maria Alzira Seixo
- Os Poemas da minha vida”
lido por Amândio
Vasconcelos
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