NA GALERIA
PARA FUGIR À CHUVA ENTROU NA GALERIA DE ARTE. Olhou as telas abstratas e
não gostou. Fechou a carteira preta, ajustou o lenço escuro ao pescoço, abotoou
um botão mais no tailleur cinzento e,
impaciente, balançou a saca de plástico onde trazia a renda. A seguir, quase
raivosa, arrasou a pintura e foi desagradável comigo. — Como se desperdiça
tempo e dinheiro para promover coisas assim! Em que lua andam os que tais
coisas admitem? Faça o favor de me explicar o que quer isto dizer, esbracejou,
furiosa. Olhei-a e senti a vida dura que levava, a desilusão intensa, o desgaste
do tempo que lhe foi agreste. Ela trazia nas rugas do rosto, na austeridade da
roupa, no cerrar dos lábios finos, um inenarrável desespero. A infelicidade
tomara-lhe a pele, os nervos e o sangue antes de abater a vontade e de
encerrar, definitivamente, o seu espírito para a luz e para a alegria do mundo.
— Terei gosto em ajudá-la a ver esta pintura, disse-lhe, mas, antes disso,
gostava de conversar consigo de modo mais ameno. Podemos falar de outras
coisas? Que tal sobre a sua renda? Posso vê-la? A senhora olhou-me surpreendida
e perguntou: — falar da renda? Depois de avaliar o interesse no meu rosto,
descontraiu-se para dizer que começara uma colcha de croché. Mostro-lha se
quiser, disse. — Faço, sim, questão de ver o seu trabalho mas, antes disso,
deixe-me descrevê-lo. É de cor neutra, talvez branca ou cinzenta. Geometrismo
muito fechado. Quadrados ou triângulos ligados entre si, quase sem casas
abertas... — Como adivinhou?, exclamou, admirada, exibindo o seu trabalho tão
austero como ela, tão desanimado quanto era a sua vida. — Quando era nova as
rendas eram de rosetas complicadas, abertas, lindas, ia a dizer mais alegres,
românticas. Agora... — Agora a senhora perdeu o interesse pela vida, pelos
outros, pelo que ocorre a seu lado mas que não tem vontade de ver, sentir ou
viver. Não é assim? Era exatamente assim. A chuva parou e o sol iluminou o dia.
A senhora, dirigindo-se para a porta, disse-me: — Da pintura falaremos para a
próxima vez. E... saiu.
Edgardo Xavier
in “Loengo” – contos
lido por Manuela
Caldeira
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