terça-feira, 25 de outubro de 2016

TERRA QUENTE


TERRA QUENTE

I
Quantas vezes invoquei em vão
a minha Terra Quente — desde o início
fiel depositária do meu pó.

Quantas vezes embebi
afectuosas adagas
nos seus flancos mais expostos.

Quantas vezes cometi
inconfidências, dolos, falsidades,
jurando sobre ela,

Dito doutro modo: elegias,
que em momentos de extremo desvario
cheguei a disfarçar de madrigais.

E ela, sempre generosa, continuou
a florir para mim, serenamente,
estevas e arcas no tempo delas.

Aceitou-me sem repulsa o amor
babujado de lágrimas
— o meu método de dar o amor.

E foi (por esta ordem) bicicleta,
rampa por onde pedalei até às nuvens
e enfim as próprias nuvens.

II
Quem te soubera, minha Terra Quente
— meu invólucro final, irrecusável
mistura de sangue e lume e borboletas –

imune ao explosivo
sopro com que o tempo nos derruba
um por um os baluartes de argila!

a.m.pires cabral
in “Gaveta do fundo”

lido por Maria Afonso Morais

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