"O velho vendedor desta tarde, ali à esquina da rua, lembrou-me
outro, lá longe, no passado de uma cidade diferente, esse diluído não só em
tempo ou em bruma mas também num fumo aromático que não aquecia, fumo frio,
talvez, e que atravessava ossos porosos que existiam, que estavam ali dentro de
mim, um pouco arrepiados também. Eu passava todos os dias pelo homem, que usava
boina e samarra, talvez fosse espanhol, já não me lembro, e detinha-me sempre
para comprar o eterno cartucho de castanhas, que logo metia, em partes iguais,
nos bolsos já largueirões do casaco, deixando ficar as mãos naquele leve,
apesar disso reconfortante calor. Cá fora havia nevoeiro, ou então um espesso
teto de nuvens baças separava-nos da estrela da vida, que desaparecera do nosso
convívio há muito tempo. E eu, mesmo sem querer, mesmo pensando que isso era
impossível, não a imaginava lá em cima mas muito longe, para o sul, aquecendo e
iluminando a minha terra. Fazia o resto do percurso devagar, ia aproveitando
aquela sensação tão doce. Quando chegava ao hotel tinha as mãos enfarruscadas e
as castanhas estavam quase frias, mas paciência, comia-as mesmo assim. Hoje,
aqui, não comprei castanhas ao velho vendedor. Hoje, aqui, não quero sujar as
mãos e, de resto, o casaco não tem bolsos. Hoje, aqui, ainda não faz frio e o
Sol é sedentário e amigo, mora lá em cima, nunca anda muito tempo a viajar. Ou
brilha ou brilhou ou vai brilhar um dia destes, talvez amanhã. O fumo também
nunca chega a ser névoa e as castanhas têm outro sabor. Nem melhor nem pior. Um
sabor diferente."
Maria Judite de
Carvalho
Lido por Manuela
Caldeira
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