quarta-feira, 14 de agosto de 2019

A MANHÃ TEM AVES E MULHERES LINDAS



A MANHÃ TEM AVES E MULHERES LINDAS,
e tem árvores e tem sonhos e varandas com flores...
Eu tenho tudo isto porque ando na rua
e porque me esqueci neste sol todo de que havia propriedade
e meti ao bolso aves e mulheres, árvores, varandas e sonhos...
Tenho tudo isto e não tenho nada.
Porque a noite em que tudo se apaga, já está dentro dos meus olhos,
porque bem sei afinal que as minhas mãos estão razias, e nos bolsos
só está o sonho de lá ter metido qualquer coisa...

A noite já veio e eu queria ainda acreditar nesta manhã,
queria por força que tudo fosse manhã, dentro de mim e dos outros...
Mas nem eu nem os outros ternos senão sonhos envenenados,
senão esta recordação atravessada na carne,
dum dia que não houve,
dum dia que mais urna vez nos foi roubado,
dum dia em que ia a haver realmente
a manhã de sol, de todos nós.

Nem paz, nem gritos, nem beleza, nem sonhos
se salvam dentro desta manhã em que me sinto intruso
e a mais, numa natureza tão longe do homem,
numa natureza que ainda ignora
termos ficado todos sepultados junto dos outros todos que morreram...
Porque a vida continua,
mas em vão caiu na terra o sangue,
em vão o sangue se misturou á lama das trincheiras,
escorreu das casas despedaçadas,
foi rio descendo as ruas das cidades mártires...
Em vão —
mas não sai dos meus ouvidos o último estertor dos nossos mortos,
a voz dos que morreram por nós em todas as latitudes,
crucificados para a nossa salvação,
dos que morreram para redimir as nossas cobardias quotidianas,
para vingar as nossas derrotas quotidianas,
para nos salvar da nossa miséria quotidiana...

Dos que morreram por nós, por vós, por todos,
dos que morreram mesmo pelos que não sabem,
mesmo pelos que fingem ignorar,
mesmo por todos os inimigos...

Adolfo Casais Monteiro
in “Canto da Nossa Agonia”
Lido por Vitor Cordeiro

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