quarta-feira, 26 de setembro de 2018

ASSIM OU ... NEM TANTO



ASSIM OU ... NEM TANTO. 152

A ARTE

Riscou no chão a palavra. Soprou o excesso de terra e pediu a todos que a lessem. Alguns, do lado oposto da roda, sentiram que o escrito não se lia, não dizia, falava aleatoriamente de um conceito vago que, nos que ousaram falar, estava baralhado. Ao lado, apurados os olhos, excluídas as crostas da terra que secava, ficavam letras alongadas, tão torcidas que mal se viam, tão determinadas que toda a suavidade que houvesse se perdia no arabesco, no traço que feriu a terra, cortando em ziguezague as letras principais. Todos, no entanto, liam perfeita, de patas para o ar ou de lado, a palavra. Arte é o que fica para resolver ou se resolve numa ideia, disse o que ensinava partindo entre os dedos nodosos o pauzinho que usara para escrever. A Arte, que todos bem conhecem e sabem de cor, é uma ideia tão clara, tão firme, tão leve, tão especial que desaparece na definição de quem a tenta segurar. A palavra que escrevi é só isso, uma palavra de tanto sentido e força que fica como mistério preso nas quatro letras que, em português, a amarram onde quer que se escrevam sem perceber que o que prendem ao conceito se liberta para ser, indizível, o lado mágico das coisas. A arte, acrescentou o mestre, esteve no meu espírito, no vosso, no jeito de andar só com um pé, aos saltinhos por onde pesada, esmagadora e tirana se não deixou definir. Assim é a vida que, à vez, nos prende e liberta, nos arrasta e faz levitar. Alguns de nós viram a palavra vestida de terra, riscada para estar, ser e significar mas nenhum consegue segurar a sua nudez lisa, imponderável como se fosse em si mesma a pele do tempo.

Edgardo Xavier.
Sintra, Setembro de 2018
Lido por Manuela Caldeira

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