sábado, 26 de maio de 2018

Tardou-me a existência.


Tardou-me a existência.
Puxava-me para dentro o sossego do nada, que era tudo o que tinha.
A ausência dos sons da linguagem, fez-me crer que flutuava no ventre
de minha mãe. Tinha todo o corpo, por dentro de um silêncio limpo e claro
e eu tardava, em querer deixar aquele lugar, sem sons, sem fala e sem tempo.
Cada gesto era medido por eternidades, fundiam-se uns nos outros,
por dentro de um ar, que havia entre as nuvens e a minha cabeça,
a existir para lá de qualquer outra existência.
E eu tardava, ou tardava-me...
Algo me fazia saber, que não havia espaço para a minha chegada.
Que o chão gemia do peso das preces, quê de tão pesadas,
já não se elevavam aos céus. Que até as crianças as pisavam,
ou jogavam à bola com elas, deixando as mães aflitas.
E eu tardava, ou tardava-me.
Podia tanto ser o inicio da vida, como o fim.
Quantas vezes durante o sono, nos aconchegamos
nas mãos côncavas da morte?
Até que um pensamento nos empurra de
encontro ao orvalho da manhã.
Hoje tardei tanto quanto pude, a deixar o sossego do nada.
Tardava-me a existência, ou eu tardei em querê-la.
Cheguei à janela da manhã e olhei para o chão sem espaço.
Um pássaro pousou-me nos dedos e quebrou-me o silêncio do corpo.
Quis sussurrar-me um segredo no peito, para que bem o ouvisse e partiu.
"Numa terra sem chão, voa!", disse.
E eu...segui-o.

Sónia Micaelo (a publicar)
Lido por Manuela Caldeira

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