terça-feira, 30 de maio de 2017

ROMANCE


ROMANCE

Ora pois: foi tal e qual como vos digo:
Minha Mãe, certo dia, pôs a questão assim:
-ou Ela, ou eu!
E ficou resolvido que no dia doze
Minha Mãe parisse,
E pariu!

Pariu e ninguém se opôs! Ninguém!
Como se fosse um feito glorioso
Parir assim alguém, tão nu, tão desgraçado!
Por mim,
Ainda disse que não.
Mas o seu Anjo da Guarda
Era forte e tenebroso…
E aquele frágil cordão
Deixou de ser o meu Pão,
O meu Vinho
E a paz eterna do meu coração
Mesquinho.

Deixou de ser o silêncio
Delicado e agradecido
Dos meus instintos menores…
Deixou de ser o Norte daquele lago
Onde boiava o meu corpo
Sem alegria e sem dores.

Deixou de ser aquela verdadeira
E sagrada ignorância do meu nome,
Que Satanás me disse, quando disse:
- Respira e come,
Respira e come,
Animal!
(A voz de Satanás já nesse tempo
Era humana e natural…)

Deixou de ser um mundo e foi um outro.
Foi a inocência perdida
E a minha voz acordada…
Foi a fome, a peste e a guerra.
Foi a terra
Sem mais nada.

Depois,
Sem dó nem piedade a vida começou…
Minha Mãe, a tremer, analisou-me o sexo
E, ao ver que eu era homem,
Corou…

Miguel Torga

Lido por Maria Helena

Sem comentários:

Enviar um comentário