sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Ai, se não fosse a névoa da manhã


Ai, se não fosse a névoa da manhã
e a velhinha janela onde me vou
debruçar para ouvir a voz das cousas,
eu não era o que sou.

Se não fosse esta fonte que chorava
e como nós cantava e que secou...
e este sol que eu comungo, de joelhos,
eu não era o que sou.

Ai, se não fosse este luar que chama
os espectros à Vida, e se infiltrou,
como fluido mágico, em meu ser,
eu não era o que sou.

E se a estrela da tarde não brilhasse;
e se não fosse o vento que embalou
meu coração e as nuvens nos seus braços,
eu não era o que sou.

Ai, se não fosse a noite misteriosa
que meus olhos de sombras povoou
e de vozes sombrias meus ouvidos,
eu não era o que sou.

Sem esta terra funda e fundo rio
que ergue as asas e sobe em claro voo;
sem estes ermos montes e arvoredos
eu não era o que sou.

Teixeira de Pascoaes (1877-1952)
in “Pequena Antologia de Poemas Portuguesas”

lido por Alice Santos

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