FÉNIX
Sobre a mesa forrada a
linho,
há uma broca, uma chave
de fendas, uma concha
e um cadinho em platina;
• Ao lado, três
marquesas, sobre as quais jaz um corpo em cada.
Ferramentas e corpos
aguardam a minha intervenção.
Com a broca
chego ao interior do
cérebro de Leonardo,
e com a chave de fendas
desaperto o parafuso da
massa cinzenta.
Com a concha retiro uma
porção da sua ciência.
De seguida,
faço o mesmo ao cérebro
de Che
e para terminar...
a mesma operação no
cérebro de Adolfo.
A Coloco as três porções
de massa cinzenta
no cadinho de fundição,
misturo-as, agitando
muito bem
e de seguida levo ao
forno à temperatura de fusão.
Depois desta delicada
operação,
estou exausto
e como a fusão das
porções demora o seu tempo
reclino-me no sofá... e
adormeço.
Durante o sono dou comigo
em Jerusalém.
Vejo-me no senado
observando a multidão
e reparo em Pilatos, que
debruçado sobre o cadinho,
mexe e remexe na mistura,
ao mesmo tempo que
adiciona algo que não consigo descortinar.
O seu rosto exibe um
sorriso sarcástico
virado para um homem
amarrado num madeiro.
Aflito, agito-me no sofá
e quase acordo,
mas prossigo no sonho.
Dou comigo na Sierra
Maestra e reparo,
que de novo o cadinho
está sendo remexido.
Ao lado, há um corpo
estendido no chão,
e um pouco afastada, jaz
uma boina ensanguentada.
Inclino-me e apanho uma
estrela amachucada,
talvez perdida na
aflição.
Há gente sorrindo,
mexendo e remexendo
no taça da purificação.
Estremeço. Entro em
transe.
Completamente encharcado
em suor, agito-me de novo no sofá,
e dou comigo num grande
edifício apinhado de gente.
Parece-me uma fábrica. É
uma fábrica com uma alta porta ao centro,
que dá entrada a uma
linha de comboios.
Vagões carregados de
rostos de esgar
e mãos que se agitam-se
por entre grades,
tentam desapertar
gargantas que sufocam...
Sinto gás na minha.
Exausto, acordo em sufoco.
Ao nariz chega-me um
aroma estranho que não reconheço.
No meu cadinho, a mistura
entra em ebulição.
Levanto-me e espreito.
A mistura ganha a cor de sangue-vivo,
que logo muda para rosa e de seguida, para verde-esperança.
O estranho aroma dá lugar
ao aroma da flor do amor-perfeito,
e dele se liberta um raio
que enche de luz a minha sala de operações.
Sossego.
Afinal, penso eu,
depois de milénios de
sofrimento,
vale a pena fundir cérebros
diferentes.
Talvez surja uma nova
luz, que dê luz a um mundo novo!
A mistura está sendo
preparada.
Talvez valha a pena
agitar!
Angelino Santos Silva
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