quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

FÉNIX


FÉNIX

Sobre a mesa forrada a linho,
há uma broca, uma chave de fendas, uma concha
e um cadinho em platina;
• Ao lado, três marquesas, sobre as quais jaz um corpo em cada.

Ferramentas e corpos aguardam a minha intervenção.

Com a broca
chego ao interior do cérebro de Leonardo,
e com a chave de fendas
desaperto o parafuso da massa cinzenta.
Com a concha retiro uma porção da sua ciência.

De seguida,
faço o mesmo ao cérebro de Che
e para terminar...
a mesma operação no cérebro de Adolfo.

A Coloco as três porções de massa cinzenta
no cadinho de fundição,
misturo-as, agitando muito bem
e de seguida levo ao forno à temperatura de fusão.

Depois desta delicada operação,
estou exausto
e como a fusão das porções demora o seu tempo
reclino-me no sofá... e adormeço.

Durante o sono dou comigo em Jerusalém.
Vejo-me no senado observando a multidão
e reparo em Pilatos, que debruçado sobre o cadinho,
mexe e remexe na mistura,
ao mesmo tempo que adiciona algo que não consigo descortinar.
O seu rosto exibe um sorriso sarcástico
virado para um homem amarrado num madeiro.

Aflito, agito-me no sofá e quase acordo,
mas prossigo no sonho.

Dou comigo na Sierra Maestra e reparo,
que de novo o cadinho está sendo remexido.

Ao lado, há um corpo estendido no chão,
e um pouco afastada, jaz uma boina ensanguentada.
Inclino-me e apanho uma estrela amachucada,
talvez perdida na aflição.
Há gente sorrindo, mexendo e remexendo
no taça da purificação.
Estremeço. Entro em transe.
Completamente encharcado em suor, agito-me de novo no sofá,
e dou comigo num grande edifício apinhado de gente.
Parece-me uma fábrica. É uma fábrica com uma alta porta ao centro,
que dá entrada a uma linha de comboios.
Vagões carregados de rostos de esgar
e mãos que se agitam-se por entre grades,
tentam desapertar gargantas que sufocam...
Sinto gás na minha. Exausto, acordo em sufoco.

Ao nariz chega-me um aroma estranho que não reconheço.
No meu cadinho, a mistura entra em ebulição.
Levanto-me e espreito.
A mistura ganha a cor de sangue-vivo,
que logo muda para rosa e de seguida, para verde-esperança.
O estranho aroma dá lugar ao aroma da flor do amor-perfeito,
e dele se liberta um raio que enche de luz a minha sala de operações.
Sossego.

Afinal, penso eu,
depois de milénios de sofrimento,
vale a pena fundir cérebros diferentes.
Talvez surja uma nova luz, que dê luz a um mundo novo!

A mistura está sendo preparada.
Talvez valha a pena agitar!


Angelino Santos Silva

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