quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A DEFESA DO POETA


A DEFESA DO POETA

Senhores jurados, sou um poeta.
um multipétalo, uivo, um defeito.
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível, um lápis
de armazenado espanto, e por fim,
com a paciência dos versos,
espero viver dentro de mim...

Sou em código o azul de todos,
(curtido coiro de cicatrizes)
uma avaria cantante,
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade,
o vosso enfarte, serei.
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição,
de raptar-me, em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição...

Senhores tiranos, que do baralho
de em pó volverdes sois os reis,
sou um poeta... jogo-me aos dados!
ganho as paisagens que não vereis...

Senhores heróis, até aos dentes.
puro exercício de ninguém.
minha cobardia é esperar-vos...
umas estrofes mais além.

Senhores três, quatro, cinco, e sete
que medo vos pôs por ordem?
Que pavor fechou o leque
da vossa diferença, enquanto homem?

Senhores juízes, que não molhais
a pena na tinta da natureza,
não apedrejeis meu pássaro,
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas...
apanhadas em delito de perdão.
a raiz quadrada da flor,
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência. A mesa posta,
de um verso, onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
A poesia, é para comer!

Natália Correia, "Poesia Completa", Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000, pág. 330 e seg.

N.B. Nesta edição, o poema leva a seguinte nota, do punho da autora: "Compus este poema para me defender no Tribunal Plenário de tenebrosa memória, o que não fiz a pedido do meu advogado que sensatamente me advertiu de que essa minha insólita leitura no decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a sentença.".


Lido por Luísa Colaço

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