A DEFESA DO POETA
Senhores jurados, sou um poeta.
um multipétalo, uivo, um defeito.
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.
Sou um vestíbulo do impossível, um lápis
de armazenado espanto, e por fim,
com a paciência dos versos,
espero viver dentro de mim...
Sou em código o azul de todos,
(curtido coiro de cicatrizes)
uma avaria cantante,
na maquineta dos felizes.
Senhores banqueiros sois a cidade,
o vosso enfarte, serei.
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.
Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição,
de raptar-me, em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição...
Senhores tiranos, que do baralho
de em pó volverdes sois os reis,
sou um poeta... jogo-me aos dados!
ganho as paisagens que não vereis...
Senhores heróis, até aos dentes.
puro exercício de ninguém.
minha cobardia é esperar-vos...
umas estrofes mais além.
Senhores três, quatro, cinco, e sete
que medo vos pôs por ordem?
Que pavor fechou o leque
da vossa diferença, enquanto homem?
Senhores juízes, que não molhais
a pena na tinta da natureza,
não apedrejeis meu pássaro,
sem que ele cante minha defesa.
Sou um instantâneo das coisas...
apanhadas em delito de perdão.
a raiz quadrada da flor,
que espalmais em apertos de mão.
Sou uma impudência. A mesa posta,
de um verso, onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
A poesia, é para comer!
Natália Correia,
"Poesia Completa", Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000, pág. 330 e
seg.
N.B. Nesta edição, o
poema leva a seguinte nota, do punho da autora: "Compus este poema para me
defender no Tribunal Plenário de tenebrosa memória, o que não fiz a pedido do
meu advogado que sensatamente me advertiu de que essa minha insólita leitura no
decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a sentença.".
Lido por Luísa Colaço
Sem comentários:
Enviar um comentário