quarta-feira, 29 de julho de 2015

ESCREVO, E NÃO SEI SE PARA TI


ESCREVO, E NÃO SEI SE PARA TI

O sol acordou bem disposto e ainda não parou de brincar às escondidas
comigo. Volta e meia usa as nuvens brancas e fofas para se esconderá com ar
traquina espera que eu o descubra.
A roda pedaleira marca o compasso. No seu infindável movimento
circular emite um assobio monocórdico que me mantém presa à realidade
através da audição.
No entanto, os olhos enveredam por trilhos sonhadores que ao redor
plano se mostra. Mesmo até perder de vista, na desorientação que procuro,
deixo o asfalto manhoso da estrada que serpenteia, e elevada a cerca de 10
cm do chão em tranquilo deleite, sorvo com todos os sentidos esta natureza
bucólica e romântica.
À direita, a ria em maré vaza, mostra as suas entranhas e alimenta aves e
homens que se atrevem numa mistura de lodo e areia.
Os pés afundam-se em buracos negros e viscosos. Além, pequenos pontos
negros pintalgam o azul aquático deslizante. Sombras estranhas de
instrumentos que não reconheço recortam o ar.
Adivinho pescadores sem barco numa faina em forma de concha. Vejo
bandos de aves brancas e ordeiras de patas e bicos longos a patrulharem a
margem.
O cheiro é intenso mas não me é de todo desagradável. Pelo contrário.
Pega em mim ao colo e leva-me ao passado, à praia do Areínho, onde
passávamos o dia entre a barraca azul, piquenique e banhos infindáveis até o
sol se transformar numa bola de lume e adormecer no horizonte.
Os nossos sentidos são extraordinários. Gravam memórias que se soltam
ao mínimo impulso e levam-nos numa cápsula de tempo a esses lugares
mágicos que guardamos dentro de nós.
À esquerda, o verde impera e percorre todas as tonalidades possíveis.
Formam-se talhões rasteiros pontilhados por vegetação mais alta.
Todo este manto verde deixa-se penetrar por pequenos cursos de água
que procuram caminho até à ria. E as aves comunicam com melodiosas
conversas e eu tento perceber o que dizem... Ao longe o vento traz-me o
toque do sino que também me quer falar, o ladrar do cão, sempre alerta a
algo estranho, o roncar do tractor que nem ao domingo descansa e o barulho
do motor de um carro, lá, bem lá ao fundo, chegam para me arrancar do
sonho.
Um pardal equilibrista poisa no ponto mais alto de um junco e ensaia
coreografias ondulantes na brisa terna do vento, já ali.
Atraquei num barco abandonado. Nos seus destroços cor azul mar,
desbotado e carcomido, encontrei o lugar ideal para fazer parar o tempo.
Desligo da vida e deixo-me navegar na tranquilidade da paisagem.

E escrevo e nem sei se para ti.

Clara Oliveira
Lido por David Cardoso

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