ESCREVO, E NÃO SEI SE PARA TI
O sol acordou bem disposto e ainda não parou de brincar às
escondidas
comigo. Volta e meia usa as nuvens brancas e fofas para se
esconderá com ar
traquina espera que eu o descubra.
A roda pedaleira marca o compasso. No seu infindável
movimento
circular emite um assobio monocórdico que me mantém presa à
realidade
através da audição.
No entanto, os olhos enveredam por trilhos sonhadores que ao
redor
plano se mostra. Mesmo até perder de vista, na desorientação
que procuro,
deixo o asfalto manhoso da estrada que serpenteia, e elevada
a cerca de 10
cm do chão em tranquilo deleite, sorvo com todos os sentidos
esta natureza
bucólica e romântica.
À direita, a ria em maré vaza, mostra as suas entranhas e
alimenta aves e
homens que se atrevem numa mistura de lodo e areia.
Os pés afundam-se em buracos negros e viscosos. Além, pequenos
pontos
negros pintalgam o azul aquático deslizante. Sombras
estranhas de
instrumentos que não reconheço recortam o ar.
Adivinho pescadores sem barco numa faina em forma de concha.
Vejo
bandos de aves brancas e ordeiras de patas e bicos longos a
patrulharem a
margem.
O cheiro é intenso mas não me é de todo desagradável. Pelo
contrário.
Pega em mim ao colo e leva-me ao passado, à praia do Areínho,
onde
passávamos o dia entre a barraca azul, piquenique e banhos
infindáveis até o
sol se transformar numa bola de lume e adormecer no
horizonte.
Os nossos sentidos são extraordinários. Gravam memórias que
se soltam
ao mínimo impulso e levam-nos numa cápsula de tempo a esses
lugares
mágicos que guardamos dentro de nós.
À esquerda, o verde impera e percorre todas as tonalidades
possíveis.
Formam-se talhões rasteiros pontilhados por vegetação mais
alta.
Todo este manto verde deixa-se penetrar por pequenos cursos
de água
que procuram caminho até à ria. E as aves comunicam com
melodiosas
conversas e eu tento perceber o que dizem... Ao longe o
vento traz-me o
toque do sino que também me quer falar, o ladrar do cão,
sempre alerta a
algo estranho, o roncar do tractor que nem ao domingo
descansa e o barulho
do motor de um carro, lá, bem lá ao fundo, chegam para me
arrancar do
sonho.
Um pardal equilibrista poisa no ponto mais alto de um junco
e ensaia
coreografias ondulantes na brisa terna do vento, já ali.
Atraquei num barco abandonado. Nos seus destroços cor azul
mar,
desbotado e carcomido, encontrei o lugar ideal para fazer
parar o tempo.
Desligo da vida e deixo-me navegar na tranquilidade da
paisagem.
E escrevo e nem sei se para ti.
Clara Oliveira
Lido
por David Cardoso
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