sexta-feira, 26 de junho de 2015

QUEM DISSE QUE UM HOMEM NÃO CHORA?


QUEM DISSE QUE UM HOMEM NÃO CHORA?

Chora, sim senhor!
E o poeta chora duas vezes de cada vez.
Uma, pelo homem que carrega na sombra da alma
e outra por si próprio. imagem desfocada desse outro.

Quem disse que um homem não chora,
decerto nunca sentiu na espinal-medula o aço frio
de uma desilusão de amor, de um sonho desfeito.

E como explicar-lhe
os dias nascidos sem eco, tão fracos e rentes ao choro?
E que lhe dizer
das mãos trémulas e prenhe de carícias sem destino,
da amargura aos murros no estômago das horas nuas e vazias?

Um homem não chora....?
Uma ova!

E quando a hidra da noite chega com o seu negro manto
feito dum silêncio espesso, opaco e irrespirável?
E as madrugadas sem brilho, amarrotadas
pelas quais o poeta navega sem uma rima que o justifique?

E quando um homem perde a visibilidade do futuro
por entre sonhos aturdidos pela fria calosidade do real
e desesperado pretende estrelar de estilhaços o céu da boca?

Um homem não chora...

Chora! E da forma mais cruel, porque muitas vezes
chora arrependido de si próprio.

Porque um homem chora, aqui me tens
na forma mais frágil que um homem se pode apresentar;
apaixonado e desiludido.

Apaixonado
porque incapaz de controlar
a maré e o barco que lhe navega no peito
pela rota perdida duma justificada fome antiga.

(Há sempre uma sereia a cantar para dentro de nós)

Desiludido
por pressentir já a língua branca e espumosa do mar
a lhe desfazer os castelos de areia, grão a grão construídos
por mãos ávidas de sonhos e cumplicidades.

(Há sempre um sonho por cumprir dentro de nós)

E ainda há quem diga
que um homem não chora.

Miguel Afonso Andersen
in "Circum-Navegaçoes"

lido por Irene Silva

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