(ensaio proso-poético)
primeira parte
quando chego a casa
(porque o mês de maio é o mês de maria da mulher da mãe do
coração do amor e meu)
Quando chego a casa minha mãe
abre os braços e com eles o canal lagrimoso abraça-me beija-me aperta-me contra
ela e eu aperto-a contra mim eu sou dela e ela é de mim o que eu a faço sentir
ser mãe mulher mundo a derreter quando chego a casa minha mãe chora ri e de
imediato roga-me uma praga porque trago barba grande e ela não quer que traga
porque venho magro e amarelo por isto por aquilo enfim há sempre um motivo é a
sua maneira estranha de mostrar zelo e demonstrar que seu amor por mim ainda
está vivo quando chego a casa minha mãe melhora da sua velhice rejuvenesce dá
um pontapé na morte e ri-se faz uma oração e agradece obrigado senhor meu
menino grande voltou agradeço-te por teres ouvido minha prece quando chego a
casa sempre mais morto que vivo minha mãe diz a toda a gente que cheguei deixa
toda a gente por mim e vai fazer-me uma gemada ovos com vinho do porto e o
milagre acontece deixo a vida de morto quando chego a casa faço uma festa no
cão e aos meninos meus sobrinhos e logo minha mãe diz não sabes que somos duas
vezes crianças é muito ciumenta esta minha mãe então desfaço-lhe a trança
puxo-lhe o cabelo faço-lhe cócegas nos pés nos sovacos em todo o corpo jogo à
bulha com ela dou-lhe uns sopapos deito-a ao chão levanto-a deixo-me cair ela
aperta os dentes faz muita força dá-me um bofetada que me dói tanto como nada
aperto-a contra mim puxo-lhe as orelhas jogamos ao manel tim-tim enfim sinto-me
uma criança adulta ou como se diz um homem feliz quando chego a casa é dia de
festa para a minha mãe cheguei a casa pela primeira vez há muitos anos foi no
dia dez de maio de mil novecentos e quarenta e nove minha mãe como sempre fica
tão contente que se comove cheguei às quatro da manhã minha mãe dormia um sono profundo
bati à porta minha mãe abriu-a e eu entrei em casa pela porta do mundo quando
chego a casa minha mãe diz chegou a primavera é uma grande poeta esta minha mãe
faço-lhe um verso como a dizer-lhe quem sai aos seus não degenera pois sou
poeta também minha mãe é uma grande poeta nunca escreveu poesia mas viveu-a
muito bem porque amou demais teve nove filhos que grande poeta é minha mãe é
poeta vinte e quatro horas por dia ou mais quando chego a casa minto se tento
descrever aquilo que sinto mesmo que seja em poesia quando chego a casa para
minha mãe é uma alegria pois é como ver a festa do sol a nascer para dar vida a
um novo dia.
segunda parte
em casa
minha mãe é minha mãe e só por
isso é para mim tudo o que as outras mulheres não são para os outros ela é a
madrinha da várzea a milinha do gião a viúva do maia e pouco mais porque dela
muito mais ninguém conhece não minha mãe levanta-se de madrugada e enquanto eu
sonho e o mundo não faz nada ela munge a vaca pensa o gado e vai à missa faz o
café come a primeira tigela e desaparece no meio do campo para onde leva uma
cisma com ela a cisma do trabalho às nove horas já tem fome vem a casa aquece o
café e come de comer nunca se esquece como a segunda tigela e diz em jeito de
disfarce sem que ninguém lhe peça ou mande que a culpa não é dela mas de ser o
pão tão pequeno e a sua barriga tão grande beija os netos cumprimentos os
filhos pede-me que lhe leia meus sonetos e dá o seu primeiro ai de cansada
trabalha muito e pouco mais faz que nada tem oitenta anos e quem faz tantos
anos nesta vida pouco mais pode fazer antes de morrer mas se eu lhe ralho ela
zanga-se e pergunta quem faz o meu trabalho mãe hoje também trabalhei muito de
manhã tirei uma vírgula do meu poema e à tarde voltei a coloca-la no mesmo
lugar como vê trabalho muito trabalho mais que você e olhe que este trabalho
também ninguém mo faz vá mande o trabalho à missa e venha descansar julgas que
eu sou como tu tão amiga da preguiça não da preguiça já sei que não é mas seja
amiga da paz já que é uma mulher de fé o trabalho é uma luta e há que fazer
tréguas de vez em quando sim hei-de as fazer hei-de as fazer mas um dia só
quando só lá para quando deus quiser e virando-me as costas lá vai ela trabalha
dizendo que tem muito que fazer mas a verdade estou em crer é por não ter
respostas para me dar ou fazer caçar e como não quer perder é no trabalho que a
minha mãe se sente mais à vontade à tarde regressa abatida mas contente cesto
de erva à cabeça falando com toda a gente o cesto da erva é penso para o gado
que ela pensa muito bem e enquanto o vai pensando pensando vai no seu estômago
também ao cair da noite todas as tardes ouvem-se as trindades e eu ouço minha
mãe avé-maria três vezes respondendo-se santa-maria porque não lhe respondem as
rezes a fome aperta e o cansanço é o que recebe como oferta de mais um dia de
trabalho um dia entre muitos dias ao longo dos seus novecentos e tal meses.
terceira parte
quando saio de casa
(adeus mão quero partir já para
regressar depressa até amanhã é um argumento que uso mas que não lhe cabe na
cabeça chora e eu rio-me para não chorar também pois ambos sabemos que o dia
imediato virá virá tarde mas vem não fora esta certeza e a vida seria uma vil
tristeza ou grande safadeza de deus pai nosso senhor criador de toda a natureza
adeus mãe vou já mas volto logo peço-lhe que não chore rogo mas quanto mais
rogo mais ela chora porque ela sabe que me vou embora em-má-hora esta mãe
morreu no dia vinte e um de junho de mil novecentos e noventa afinal partiu
primeiro que eu e sem se despedir de mim mas sabes o que te digo mãe é bom
partir quando nos pedem para ficar porque é bom sentir que nos ficam a recordar
e eu recordo-te oh se recordo é em ti que penso sempre quando acordo mas todas
as tardes ao ouvir as trindades baterem no sino sinto em mim bater também as
saudades de quando eu era menino sim o menino da minha mãe e durante o dia
quando deixo minha imaginação vogar à rédea solta sabes o que ela faz voa até seroa
e de seroa até deus pedindo-lhe que te mande de volta e sabes porquê porque
sinto tua falta e deus manda manda-te sempre a qualquer hora então não é
contigo que estou agora pois é partiste muitos anos depois mas quase à mesma
hora em que me pariste sabias que a caminhada era longa até ao céu por isso escolheste
o dia mais longo do ano fizeste-te à estrada de madrugada tu partiste mas outra
ficou cá dentro a bailar-me no pensamento a fazer-me cócegas no sentimento e a
dar-me alento para continuar a escrever versos nos termos mais ternos e
diversos este poema não acaba aqui pois apenas o vou interromper para continuar
depois quando me encontrar contigo minha mãe lá além ou para lá do além e do
muito depois num país onde não há primaveras nem invernos apenas mil e um sóis
sim vou continuar porque há amores que são eternos.
Manuel
Maia
in “Heróis da Minha terra”
lido por Goreti Dias
Sem comentários:
Enviar um comentário