quinta-feira, 20 de novembro de 2014

POEMA À MINHA MÃE



(ensaio proso-poético)

primeira parte
quando chego a casa

(porque o mês de maio é o mês de maria da mulher da mãe do coração do amor e meu)

Quando chego a casa minha mãe abre os braços e com eles o canal lagrimoso abraça-me beija-me aperta-me contra ela e eu aperto-a contra mim eu sou dela e ela é de mim o que eu a faço sentir ser mãe mulher mundo a derreter quando chego a casa minha mãe chora ri e de imediato roga-me uma praga porque trago barba grande e ela não quer que traga porque venho magro e amarelo por isto por aquilo enfim há sempre um motivo é a sua maneira estranha de mostrar zelo e demonstrar que seu amor por mim ainda está vivo quando chego a casa minha mãe melhora da sua velhice rejuvenesce dá um pontapé na morte e ri-se faz uma oração e agradece obrigado senhor meu menino grande voltou agradeço-te por teres ouvido minha prece quando chego a casa sempre mais morto que vivo minha mãe diz a toda a gente que cheguei deixa toda a gente por mim e vai fazer-me uma gemada ovos com vinho do porto e o milagre acontece deixo a vida de morto quando chego a casa faço uma festa no cão e aos meninos meus sobrinhos e logo minha mãe diz não sabes que somos duas vezes crianças é muito ciumenta esta minha mãe então desfaço-lhe a trança puxo-lhe o cabelo faço-lhe cócegas nos pés nos sovacos em todo o corpo jogo à bulha com ela dou-lhe uns sopapos deito-a ao chão levanto-a deixo-me cair ela aperta os dentes faz muita força dá-me um bofetada que me dói tanto como nada aperto-a contra mim puxo-lhe as orelhas jogamos ao manel tim-tim enfim sinto-me uma criança adulta ou como se diz um homem feliz quando chego a casa é dia de festa para a minha mãe cheguei a casa pela primeira vez há muitos anos foi no dia dez de maio de mil novecentos e quarenta e nove minha mãe como sempre fica tão contente que se comove cheguei às quatro da manhã minha mãe dormia um sono profundo bati à porta minha mãe abriu-a e eu entrei em casa pela porta do mundo quando chego a casa minha mãe diz chegou a primavera é uma grande poeta esta minha mãe faço-lhe um verso como a dizer-lhe quem sai aos seus não degenera pois sou poeta também minha mãe é uma grande poeta nunca escreveu poesia mas viveu-a muito bem porque amou demais teve nove filhos que grande poeta é minha mãe é poeta vinte e quatro horas por dia ou mais quando chego a casa minto se tento descrever aquilo que sinto mesmo que seja em poesia quando chego a casa para minha mãe é uma alegria pois é como ver a festa do sol a nascer para dar vida a um novo dia.

segunda parte
em casa

minha mãe é minha mãe e só por isso é para mim tudo o que as outras mulheres não são para os outros ela é a madrinha da várzea a milinha do gião a viúva do maia e pouco mais porque dela muito mais ninguém conhece não minha mãe levanta-se de madrugada e enquanto eu sonho e o mundo não faz nada ela munge a vaca pensa o gado e vai à missa faz o café come a primeira tigela e desaparece no meio do campo para onde leva uma cisma com ela a cisma do trabalho às nove horas já tem fome vem a casa aquece o café e come de comer nunca se esquece como a segunda tigela e diz em jeito de disfarce sem que ninguém lhe peça ou mande que a culpa não é dela mas de ser o pão tão pequeno e a sua barriga tão grande beija os netos cumprimentos os filhos pede-me que lhe leia meus sonetos e dá o seu primeiro ai de cansada trabalha muito e pouco mais faz que nada tem oitenta anos e quem faz tantos anos nesta vida pouco mais pode fazer antes de morrer mas se eu lhe ralho ela zanga-se e pergunta quem faz o meu trabalho mãe hoje também trabalhei muito de manhã tirei uma vírgula do meu poema e à tarde voltei a coloca-la no mesmo lugar como vê trabalho muito trabalho mais que você e olhe que este trabalho também ninguém mo faz vá mande o trabalho à missa e venha descansar julgas que eu sou como tu tão amiga da preguiça não da preguiça já sei que não é mas seja amiga da paz já que é uma mulher de fé o trabalho é uma luta e há que fazer tréguas de vez em quando sim hei-de as fazer hei-de as fazer mas um dia só quando só lá para quando deus quiser e virando-me as costas lá vai ela trabalha dizendo que tem muito que fazer mas a verdade estou em crer é por não ter respostas para me dar ou fazer caçar e como não quer perder é no trabalho que a minha mãe se sente mais à vontade à tarde regressa abatida mas contente cesto de erva à cabeça falando com toda a gente o cesto da erva é penso para o gado que ela pensa muito bem e enquanto o vai pensando pensando vai no seu estômago também ao cair da noite todas as tardes ouvem-se as trindades e eu ouço minha mãe avé-maria três vezes respondendo-se santa-maria porque não lhe respondem as rezes a fome aperta e o cansanço é o que recebe como oferta de mais um dia de trabalho um dia entre muitos dias ao longo dos seus novecentos e tal meses.

terceira parte
quando saio de casa

(adeus mão quero partir já para regressar depressa até amanhã é um argumento que uso mas que não lhe cabe na cabeça chora e eu rio-me para não chorar também pois ambos sabemos que o dia imediato virá virá tarde mas vem não fora esta certeza e a vida seria uma vil tristeza ou grande safadeza de deus pai nosso senhor criador de toda a natureza adeus mãe vou já mas volto logo peço-lhe que não chore rogo mas quanto mais rogo mais ela chora porque ela sabe que me vou embora em-má-hora esta mãe morreu no dia vinte e um de junho de mil novecentos e noventa afinal partiu primeiro que eu e sem se despedir de mim mas sabes o que te digo mãe é bom partir quando nos pedem para ficar porque é bom sentir que nos ficam a recordar e eu recordo-te oh se recordo é em ti que penso sempre quando acordo mas todas as tardes ao ouvir as trindades baterem no sino sinto em mim bater também as saudades de quando eu era menino sim o menino da minha mãe e durante o dia quando deixo minha imaginação vogar à rédea solta sabes o que ela faz voa até seroa e de seroa até deus pedindo-lhe que te mande de volta e sabes porquê porque sinto tua falta e deus manda manda-te sempre a qualquer hora então não é contigo que estou agora pois é partiste muitos anos depois mas quase à mesma hora em que me pariste sabias que a caminhada era longa até ao céu por isso escolheste o dia mais longo do ano fizeste-te à estrada de madrugada tu partiste mas outra ficou cá dentro a bailar-me no pensamento a fazer-me cócegas no sentimento e a dar-me alento para continuar a escrever versos nos termos mais ternos e diversos este poema não acaba aqui pois apenas o vou interromper para continuar depois quando me encontrar contigo minha mãe lá além ou para lá do além e do muito depois num país onde não há primaveras nem invernos apenas mil e um sóis sim vou continuar porque há amores que são eternos.

Manuel Maia
in “Heróis da Minha terra”
lido por Goreti Dias

Sem comentários:

Enviar um comentário