sábado, 24 de maio de 2014

QUEM ERA?



QUEM ERA?

Com suspiros no sol e rebuçados no vento
a imperfeita ilusão do discernimento.
Às tantas era da preta noite que surgia o vão
mas disso ninguém falava, ai, quanta aberração…

Financiava o amor, empanturrava os deuses
sabia de antemão prever desgostos e reveses
Libertava as prisões, alicerçava as flores
emendava o arco-íris com outros tons e cores.

Era mestre dos pequenos silêncios em cada oratória
pelos filhos, ensinava os pais, sem palmatória
Às curvas da beldade endeusava poemas
via as grandes cidades pelas serras mais pequenas.

Tinha o dom de sorrir nos momentos enrugados
escrevia cartas de amor aos ramos secos e quebrados
que da Lua pendiam à sexta-feira à noite
descendo aos infernos da inquisição, do açoite…

Para ler salmos, oferecer maçãs perdoar e sofrer
e no olhar alheio ver o querer e o ter.
Enquanto pela dor arejava os recantos, pintava os amanhãs
padrinho dos leões, noivo da cotovia, protector das rãs
mas de lágrimas caindo, sempre, sempre, sempre.

Nos campos de futebol distribuía livros e conceitos
nas auto-estradas recebia, feliz, conselhos de sujeitos
À porta dos cinemas contava os filmes que lá iam
e oferecia bilhetes aos que menos haviam.

Tinha a postura dos simples, dos lavados, dos sãos
até ajudava os ricos de suas próprias mãos
Pagava o devido, nunca fez cheques sem cobertura
nem cedeu à coacção, ao arbitro, à tortura.

Fez uma corda para chegar aos ares, aos altos, aos longes
e depois deu-a a um órfão, sonhador de songes
Deu amendoins ao mar, marionetas aos senhorios
limpava os riachos, os ribeiros, os rios…

Apagava os incêndios dos bosques, plantava pinheiros
incitava os últimos a serem os primeiros
Recebia os presidentes, os chefes, os patrões
com a mesma cortesia que os simples aldeões.

E sabem porquê?
Porque fez tudo assim?
Porque não existia.
Era apenas invenção dum amante da poesia!

Estranho vento cai na tua imagem
estranho fruto descende dessa aragem
estranha vantagem
esta de dar a conhecer a madrugada
antes da noite secar
nem o Sol nos limita ou endurece
apenas a vã tábua dum destino
dum endereço errado

Como foi que chegamos ao comando à distância
como foi que o jovem agarrou a nuvem
e dela fez chover as gotas de poesia
ele que nunca leu um livro
nem ficou boquiaberto num poente?

Como foi que nos metemos por entre os filamentos
e as partículas
e delas fizemos sangrar tanta inovação
tantos modelos reduzidos
em infinitas conjugações electrónicas
que tanto nos avançam
nos perturbam
e nos doem?

Hipotecamos a vida ao perfeito progresso
São as máquinas sublimes que nos puxam
nos empurram para todos os futuros…

Fernando Morais
in “O Poeta Escondido”

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