sábado, 28 de setembro de 2019

A TI, MULHER TRANSMONTANA



A TI, MULHER TRANSMONTANA

Vi-te
No umbral da tua pobre casa
Quando numa postura
Quase de joelhos
As tábuas do chão esfregavas!
Vi-te
Naquela tarde de Domingo
Quando sentada
Numa pausa da labuta,
As roupas velhas e rotas
De teus filhos,
Consertavas!
Vi-te
Lá longe no campo,
Em qualquer dia,
Ao acaso,
Quando com pesada enxada
A terra trabalhavas!
Vi-te
Várias vezes, todos os dias,
Quando com expressão cansada,
Às vezes doente, até,
Os chicharos para cozinhar
Tu preparavas!
Que ceia melhorada
Nunca havia em tua casa!
Vi-te
Cheguei-te a ver mesmo descalça
Com os pés arroxeados
Pelo frio do Inverno!
Vi-te
Triste e sozinha
Quando em dias de festa
Na Procissão não podias figurar
Porque não tinhas roupa adequada
Para poderes trajar!
Vi-te
Vi-te tantas vezes,
Ao Sol intenso
Ou à chuva,
No rio teus farrapitos a lavar!
A água límpida
Reflectia o teu rosto puro,
Mas amargurado!
E eu com o coração contristado
Pensava:
— Os tempos hão-de mudar... —
Vi-te!...
Tu eras o reflexo pálido
D'um século gélido,
Acorrentada a engrenagens
Que resultavam, quem sabe,
Das miragens malditas
De algum possível monstro,
Dono e senhor,
de algum possível lugar!...
Vi-te
Eras o engano no tempo,
O sofrimento,
Momento a momento,
Que não tinha direito a nada,
Ou a muito pouco,
Quase nada,
Que te fizesse
Verdadeiramente feliz!...
Eras afinal ainda,
Uma certa forma,
mulher-escrava!...

Mas os tempos mudaram,
Obedecendo às implícitas
alterações históricas!...

"Porque, enquanto houver vida sobre a terra,
os tempos sempre hão-de mudar!..."

E eu senti com alegria
Que a verdade venceria,
A verdade da tua condição
De mulher, apenas...
O direito total
Que te deve permitir
Viver a vida
E não apenas,
Passar ao lado dela!...

Por isso,
Mulher amiga,
Sorri
Sorri feliz,
Pois qualquer coisa me diz
Que será uma realidade
A verdade
De te ver,
Limpando sim
Mas o chão bem assoalhado,
Até quem sabe, alcatifado
De tua casa bem cuidada!...
E que os teus filhos
Hão-de ir arranjadinhos,
Com roupas asseadas, à escola...
E que tu largarás de vez a enxada
E a substituirás por actividades
Que possas suportar,
Sem que o teu corpo murche
E se mirre dia-a-dial...
Tu terás ainda o direito a comer
Arroz, massa, carne, peixe,
Com tua família ao jantar...
E não envelhecerás
Cozinhando apenas chicharos,
Fatalmente,
Como o repetir d'uma necessidade
Ou o enfartar
D'um hábito doentio!

Sentirás então
Que os tempos mudaram
E quer seja Inverno ou Estio,
Tu terás condignamente
O teu calçado,
Vestindo requintada,
Com roupas novas até,
Por ocasiões de festa,
Pressentindo que,
A máquina de lavar roupa
Será também para ti, amanhã...
Uma realidade...

Então voltarás ao rio,
Irás ao rio como d'antes,
Mas apenas para descansar,
Deixando que a água límpida,
Reflita teu rosto feliz,
Teu rosto de Mulher,
Pensando que é no tempo
Que mergulha a raiz
Desta verdade que nos diz:
— Enquanto houver vida sobre a Terra,
Os tempos sempre hão-de mudar!... —

Paula Nisa
in “Rostos de Terra”
Academia de Letras de Trás-os-Montes

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