ASSIM OU … NEM TANTO. 158
VOZES
Um dia deixei de ouvir as vozes. Esperei até sentir,
mordendo-me, a solidão de todos os caminhos. Já me acostumara a tê-las por
dentro. Nem todas diziam coisas importantes, interessantes, fundamentais.
Algumas, com timbre de gente desocupada, falavam de banhos de leite, do bom que
é ter perfumada a intimidade da pele sem nada. Havia vozes de endemoninhados,
de santos, de indiferentes. Falavam, diziam, cantavam e as canções eram
palavras que tanto me arranhavam como batiam ou, muito mais que tudo isso, me
faziam levitar. Erguiam-me bem acima da torre mais alta e quando me deleitava
de ver minúsculos as casas, as estradas, os campos, calavam-se de repente e,
tão rápido como me tinha erguido, me via cair, cair, até que, dormente e
trémula, a tua voz me impedia de esborrachar-me na calçada. Gritavas. O teu
grito reunia os sons da raiva, do pavor, da agressão e, ainda que em fundo
barítonos de espirituais negros melodiassem, o que escutava era como o
tamborilar da água de chuva no rosto. E suavemente descia o resto da queda com
moleza de pena de rola que assim pousava no lugar onde antes estava. De tão
alheado me acharam louco, de tão parado deitei corpo que ninguém apreciou.
Cresceram-me barbas e dias havia que as arrastava na terra sempre que as vozes
me destruíam a serenidade. Percebia mas não falava. Sofria. Um dia calaram-se
as vozes de dentro e pude escutar a tua. Nem doçura, nem dor, nem amargura. A
tua, voz de quem sabe que sou e estou pronto, veio como se só sussurrasse a
importância do recado que era breve, sereno, musical e que me soou estranho.
Estranho sempre que dizes que me amas sem rir.
Edgardo Xavier
Sintra, 14 de novembro
de 2018
Lido por Manuela
Caldeira
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