sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

A VIDA



A VIDA

Ó grandes olhos outonais! místicas luzes!
Mais tristes do que o amor, solenes como as cruzes!
Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos cor
Da capa d'Hamlet, das gangrenas do Senhor!
Ó olhos negros como Noites, como poços!
Ó fontes de luar, num corpo todo ossos!
Ó puros como o Céu! ó tristes como levas
De degredados!

                                   Ó Quarta-feira de Trevas!

Vossa luz é maior, que a de três Luas Cheias.
Sois vós que alumiais os Presos, nas cadeias,
Ó velas do Perdão! candeias da Desgraça!
Ó grandes olhos outonais, cheios de Graça!
Olhos acesos como altares de novena!
Olhos de génio, aonde o Bardo molha a pena!
Ó carvões que acendeis o lume das velhinhas,
Lume dos que no Mar andam botando as linhas...
Ó farolim da barra a guiar os Navegantes!
Ó pirilampos a alumiar os caminhantes,
Mais os que vão na diligencia pela serra!
Ó Extrema-Unção final dos que se vão da Terra!

Ó janelas de treva, abertas no teu rosto!
Turíbulos de luar! Luas Cheias d'Agosto!
Luas d'Estio! Luas negras de veludo!
Ó Luas negras, cujo luar é tudo, tudo
Quanto há de branco: véus de noivas, cal
Da ermida, velas do iate, sol de Portugal,
Linho de fiar, leite de nossas Mães, mãos juntas
Que têm erguidas entre círios, as defuntas!
Consoladores dos Aflitos! Ó olhos, Portas
Do Céu! Ó olhos sem bulir como águas-mortas,
Olhos ofélicos! Dois sóis, que dão sombrinha...
Que são em preto os Olhos Verdes de Joaninha...
Olhos tranquilos e serenos como pias!
Olhos Cristãos a orar, a orar Ave Marias
Cheias de Luz! Olhos sem par e sem irmãos,
Aos quais estendo, toda a hora, as frias mãos!
Estrelas do Pastor! Olhos silenciosos,
E milagrosos, e misericordiosos,
Com os teus olhos nunca há noites sem luar,
Mesmo no Inverno, com chuva e a relampejar!
Olhos negros! vós sois duas noites fechadas,
Ó olhos negros! como o céu das trovoadas...

Mas dize, meu Amor! ó Dona de olhos tais!
De que te serve ter uns astros sem iguais?
Olha em redor, poisa os teus olhos! O que vês?
O Tédio, o Tédio, oh sobretudo o Tédio! O mês
Em que estamos, igual ao mês passado e ao que há-de
Vir. Ódios, Ambições, faltas de Honra, Vaidade
(Quase todos a têm, isso é o menos), o Orgulho
Insuportável tal o meu, e o sol de Julho!

Jesus! Jesus! quantos doentinhos sem botica!
Quantos lares sem lume e quanta gente rica!
Quantos Reis em palácio e quanta alma sem ferias!
Quantas torturas! Quantas Londres de misérias!
Quanta injustiça! quanta dor! quantas desgraças!
Quantos suores sem proveito! quantas taças
A transbordar veneno em espumantes bocas!
Quantos martírios, ai! quantas cabeças loucas,
No manicómio do Planeta! E as Orfandades!
E os vapores no Mar, doidos, às tempestades!
E os defuntos, meu Deus! que o Vento traz á praia!
E aquela que não sai por ter usada a saia!
E os que soçobram entre a vaidade e o dever!
E os que têm, amanhã, uma letra a vencer!
Olha essa procissão que passa: um torturado
De Infinito! Um rapaz que ama sem ser amado,
E para ser feliz fez todos os esforços...
Olha as insónias duma noite de remorsos,
Como dez anos de prisão maior celular!
Olha esse tísico a tossir, à beira-mar...
Olha o bebé que teve Torre de coral
De imensas ilusões, mas que uma águia, afinal,
Devorou, pois, ao vê-la ao longe, avermelhada,
Cuidou, ingénua! que era carne ensanguentada!
Quantos são, hoje? Horror! A lembrança das datas...
Olha essas rugas que têm certos diplomatas!
Olha esse olhar que têm os homens da Política!
Olha um artista a ler, soluçando, uma critica...
Olha esse que não tem talento e o julga ter
E aquele outro que o tem... mas não sabe escrever!
Olha, acolá, tantos Estúpidos, meu Deus!

(Morrendo, diz-se, vão para o Reino dos Céus…)
Olha um filho a espancar o pai que tem cem anos!
Olha um moço a chorar seus cruéis desenganos!
Olha o nome de Deus, cuspido num jornal!
Olha aquele que habita uma Torre de sal,
Muros e andaimes feitos, não de ondas coalhadas,
Mas de outras que chorou, de lágrimas salgadas!
Olha um velhinho a carregar com a farinha.
E o filho no arraial, jogando a vermelhinha!
Olha, lá vai saindo a paquete Dom Gil
Com os nossos irmãos que vão para o Brasil!
Olha, acolá, no cais uma outra como chora
É o marido, um ladrão, que vai «p'la barra fora!»
Olha esta noiva amortalhada, num caixão...

Jesus! Jesus! Jesus! o que hi vai de aflição!

Ó meu Amor! é para ver tantos abrolhos,
Ó flor sem eles! que tu tens tão lindos olhos!
Ah! foi para isto que te deu leite a tua ama,
Foi para ver, coitada! essa bola de lama
Que pelo Espaço vai, leve como a andorinha,
A Terra!

            Ó meu amor! antes fosses ceguinha...

António Nobre
in “Só lido”
Lido por Amândio Vasconcelos

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