TU ESTÁ AQUI
Estás aqui comigo à
sombra do sol
Escrevo e oiço certos
ruídos domésticos
E A luz chega-me
humildemente pela janela
E dói-me um braço
e sei que sou o pior
aspecto do que sou.
Estás aqui comigo e sou
sumamente quotidiano
E tudo o que faço ou
sinto, como que me veste de um pijama
Que uso para ser também
isto
Este bicho de hábitos,
manias, segredos, defeitos
Quase todos desfeitos,
quando depois ia fora na vida profissional ou social,… só sou um nome
e sabem o que sei o que
faço ou então sou eu que julgo que o
sabem
E sou amável, selecciono
cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
E sei que afinal posso
ser isso, talvez porque aqui sentado dentro de casa
Sou outra coisa,
Esta coisa que escreve e
tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior a manifestação
desta dor neste braço que
afecta tudo o que faço.
Bem entendido, o que faço
com este braço.
Estás aqui comigo e à
volta são as paredes
E posso passar de sala
para sala a pensar noutra coisa
E dizer aqui é a sala de
estar, aqui é o quarto, aqui é a casa de banho
E no fundo escolher cada
uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo, e sei
que só sou este corpo castigado
Passado nas pernas de
sala em sala.
Sou só estas salas, estas
paredes
Esta profunda vergonha de
o ser e não ser apenas a outra coisa
Essa coisa que sou na
estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me
absolutamente indefeso
Diante dos dias.
Que ninguém conheça este
meu nome
Este meu verdadeiro nome,
depois talvez encoberto
Noutro nome embora no
mesmo nome
Este nome de terra, de
dor, de paredes,... este nome doméstico.
Afinal fui isto nada mais
do que isto.
As outras coisas que fiz,
fi-las para não ser isto ou dissimular isto
A que somente não chamo
merda porque ao nascer me deram outro nome que não merda
e em princípio o nome de
cada coisa serve para distinguir uma coisa das outras coisas.
Estás aqui comigo e tenho pena, acredita, de ser só isto
Pena até mesmo de dizer
que sou só isto como se fosse também outra coisa
Uma coisa para além disto
que não isto
Estás aqui comigo, deixa-te estar aqui comigo
É das tuas mãos que saem
alguns destes ruídos domésticos
Mas até nos teus gestos
domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
Tu és em cada gesto todos
os teus gestos
E neste momento eu sei, eu
sinto ao certo o que significam
certas palavras
Como a palavra paz.
Deixa-te estar aqui,
perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
Perdoa pagares tão alto
preço por estar aqui
Perdoa eu revelar que na
muito pagas tão alto preço por estar aqui.
Prossegue nos gestos não
pares, procura permanecer sempre presente.
Deixa docemente
desvanecerem-se um por um os dias
E eu saber que aqui
estas, de maneira a poder dizer
Sou isto é certo,.....mas
sei que tu estás aqui
Ruy Belo
Lido por Nelson Neves
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