quinta-feira, 26 de outubro de 2017

TU ESTÁ AQUI


TU ESTÁ AQUI

Estás aqui comigo à sombra do sol

Escrevo e oiço certos ruídos domésticos

E A luz chega-me humildemente pela janela
E dói-me um braço
e sei que sou o pior aspecto do que sou.

Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano

E tudo o que faço ou sinto, como que me veste de um pijama
Que uso para ser também isto

Este bicho de hábitos, manias, segredos, defeitos
Quase todos desfeitos, quando depois ia fora na vida profissional ou social,… só sou um nome
e sabem o que sei o que faço      ou então sou eu que julgo que o sabem
E sou amável, selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
E sei que afinal posso ser isso, talvez porque aqui sentado dentro de casa
Sou outra coisa,
Esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior a manifestação
desta dor neste braço que afecta tudo o que faço.
Bem entendido, o que faço com este braço.

Estás aqui comigo e à volta são as paredes
E posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
E dizer aqui é a sala de estar, aqui é o quarto, aqui é a casa de banho
E no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer

Estás aqui comigo, e sei que só sou este corpo castigado
Passado nas pernas de sala em sala.
Sou só estas salas, estas paredes
Esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
Essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol

Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
Diante dos dias.

Que ninguém conheça este meu nome
Este meu verdadeiro nome, depois talvez encoberto
Noutro nome embora no mesmo nome
Este nome de terra, de dor, de paredes,... este nome doméstico.

Afinal fui isto nada mais do que isto.

As outras coisas que fiz, fi-las para não ser isto ou dissimular isto
A que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das outras coisas.

Estás aqui comigo      e tenho pena, acredita, de ser só isto
Pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
Uma coisa para além disto que não isto

Estás aqui comigo,     deixa-te estar aqui comigo
É das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
Mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
Tu és em cada gesto todos os teus gestos
E neste momento eu sei,     eu sinto ao certo      o que significam certas palavras
Como a palavra paz.

Deixa-te estar aqui, perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
Perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
Perdoa eu revelar que na muito pagas tão alto preço por estar aqui.
Prossegue nos gestos não pares, procura permanecer sempre presente.
Deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
E eu saber que aqui estas, de maneira a poder dizer
Sou isto é certo,.....mas sei que tu estás aqui

Ruy Belo

Lido por Nelson Neves

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