terça-feira, 30 de maio de 2017

SAFRA DE SAFIRAS


SAFRA DE SAFIRAS

A idade, é certo, removeu de mim
alguns itens — mas em troca deu-me
um pouco mais de argúcia.

Por exemplo, ensinou-me
como aceitar a escassez:
qualquer migalha que possa recolher
no bornal de mendigo é agora bem-vinda.

Ainda esta manhã. Apetecia-me
um desses grandes sóis torrenciais
que põem a terra em chamas
- mas era nuvens o que havia no céu.

Não me lamentei, não me arrepelei,
não rasguei as vestes e não lacerei
as carnes quase nuas nos picos das silveiras.

Porque de quando em quando fazia-se um rasgão
nas nuvens franjadas de ouro
por onde assomava um retalho de azul.

E com esse azul intermitente fiz
uma boa safra de safiras,
pensando: que diabo,
o sol torrencial pode esperar.

A.m. Pires Cabral
in “Gaveta do Fundo”

lido por Maria Afonso Morais

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