terça-feira, 27 de setembro de 2016

CARTA DE AMOR


CARTA DE AMOR

Ouve-me!, se é que ainda
Me podes tolerar.
Neste papel rasgado
Das arestas da minh'alma,
Ai!, as absurdas intrigas
Que te quisera contar!
Ai os enredos, os medos,
E as lutas em que medito,
Quer dê, quer não dê por isso,
Sem descansar um momento...!
Quem sofre - pensa; e o tormento
Não é sofrer, é pensar.
O pensamento
Faz engolir o vómito de fel...
Ouve! Se sou cruel
Neste papel queimado
Dos incêndios da minh’alma,
É de raiva de que embalde
Te procure dizer sem falsidade
Coisas que, ditas, já não são verdade.
E procuro eu dizê-las,
Ou procuro escondê-las?
E procuro eu dizer-tas,
Ou procuro a vaidade
De mas dizer, a mim,
De modo que mas ouçam
Esses mesmos que eu desprezo,
E cujo louvor me é caro?
Não me acredites!
O que digo, antes ou depois, o peso;
E não!, não é a ti que eu me declaro!
Sei que me não entendes.
Sei que quanto melhor te revelar
O meu mundo profundo,
Os limos do meu poço,
O antro que é só meu
(sendo apesar de tudo nosso)
Menos me entenderás,
Tu..., - a minha metade!
Por isso me não és
Senão vaidade,
Meu amor!, meu pretexto
Deste miserável texto...
Vês como sou?
Mas sou pior do que isto,
Sabe que, se me acuso,
É só por vício antigo
De me lamber as mãos
E agatanhar o peito,
De me exibir à Cristo!
Sabe que a meu respeito
Vou além de quanto digo.
Sei que o pavor, a noite, o frio,
Serão jardim da minha ermida;
Sei que tenho dó de mim...
Fica tu sabendo assim, querida!,
Porque te chamo.
Mas amar-te?! Não!, minha vida.
Não! reduziram-me a isto:
Só a mim amo.
Ama-me tu, se podes,
Sem procurar compreender-me:
Poderias julgar que me encontravas,
E seria eu perder-te E tu perderes-me...
Ao menos tu... desiste!
A sobre-humana prova que te peço,
A mais heróica!,
A mais inglória e a mais triste,
É essa... Mais que o despeito, o ódio,
A incompreensão
Dos que por quem passei sereno,
Estendendo a mão afável
Ao frio, pérfido, amável
Aperto da sua mão,
Me punge, me pesa no coração,
O fruste amor dos que me interpretaram
Ai!, bem quiseram amar-me!
Bem o tentaram.
Mas nunca me perdoaram
O não serem dominados
Nem poderem dominar-me...
E assim o nosso amor foi uma luta
De cobardes abraçados.
Entre eu e tu, tão profundo é o contrato
Que não pode haver disputa.
Não é pacto de um pobre aperto de mão:
Entre nós, - ou sim ou não.

Despi-me... vê se me queres!
Despi-me com impudor,
Que é irmão do desespero.
Vê se me queres,
Sabendo que te não quero,
Nem te mereço, nem mereço ser amado
Pela pior das mulheres...
Poderás amar-me assim,
(Como explicar-me?!)
Por Qualquer Coisa que eu for,
Mas não por mim!, não a mim...!

Beijo-te os pés, meu amor.

José Régio

Lido por Amândio Vasconcelos

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