segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Colectânea Galeria Vieira Portuense 2015

Capa Colectânea
Ilustração: Luís Pedro Viana

PREFÁCIO


E por estas bandas a Poesia não vai acabar apesar de...

A poesia não vai à missa,
não obedece ao sino da paróquia,
prefere atiçar os seus cães
às pernas de deus e dos cobradores
de impostos.
Língua de fogo do não
caminho estreito
e surdo da abdicação, a poesia
é uma espécie de animal
no escuro, recusando a mão
que o chama.
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável
Quase sempre paciente e sem piedade
A poesia adora
andar descalça nas areias do verão

Assim definiu a POESIA um tal José Fontinhas Rato. E sobre ela disse quase tudo em tão poucas linhas.
Talvez poucos saibam quem foi esse português que passou silenciosamente entre nós mas ninguém o desconhece quando veste um outro nome e semeia palavras e se deixa despir para mostrar quem vive nesse corpo
"A poesia é uma espécie de animal que recusa a mão que o chama e adora andar descalça na areia"... assim escreveu Eugénio de Andrade.
Um tal cauteleiro, algarvio e pobre falou dela com tanta sabedoria tanta arte que eternizou o nome, António Aleixo... o nome que era seu, e cujas letras nunca soube desenhar que ficou e vive entre os poetas que souberam da lei da morte libertar-se.
Também Miguel Torga se eternizou entre os maiores e deixou apagado e esquecido o seu nome Adolfo Correia da Rocha porque a poesia falou mais alto e foi mais longe que a medicina que exerceu.
Vestir a poesia e respirá-la não pode ser a dualidade de amá-la e fazer dela uma escada para chegar ali, uns centímetros mais acima.
A poesia não veste brocados nem usa smoking. É apenas  POESIA sem artifícios.
Os génios que por aí abundam escrevendo poemas que só eles percebem e só eles aplaudem podem subir ao palco por uns segundos mas nunca serão gente onde vive, cresce e sorri  a POESIA.
Esta coisa de querer ser ou sonhar ser é bem diferente de SER...a poesia gosta de pessoas simples e esconde-se na alma do jovem Ricardo, ou nas vozes da nossa Fernanda Cardoso que já passou os 90 anos ou da Alzira Santos, portadora de um BI mais recente...
Na Vieira Portuense, entre um cálice de vinho fino e um pratinho de doces sortidos, há as palavras da Acilda, do Angelino, da Alice, do Artur, da Teresa, do José, da Emília, da Goreti, do João, da Celina ou da Luísa.
Entre  um "Não sei quem tu foste", uma "Ternura", uns "Afetos no Porto", um "Sonho", uma "Troca" um "Requiem"ou "Uma Flor Que Eu Achei" ou "O Cheiro da Cozinha da Minha Avó" até "Lembrei-me de um Poema" as palavras vão-se tornando poesia e vão enchendo as tardes da Galeria Vieira Portuense ao terceiro sábado de cada mês 
E, no Largo dos Lóios, há sentimentos doloridos e amargos, há sonhos sonhados e perdidos, há o desejo de um país com gente menos desigual, há esperança que se canta, há alegria que veste o cinza desta cidade e há o abraço entre as artes que não escolhem estratos sociais e unem diferentes credos, cores e sotaques.
E aqui podemos entender facilmente as palavras que roubei do poema da Aurora:

"Sonho por te vestir de palavras
Anseio pelo teu verde e abraço o teu rosa
O teu azul explode no céu
E então dos teus olhos soltam-se estrelas
E os gatos voam do teu pensamento para as telas”

E É ASSIM QUE  DESCALÇA NA AREIA, RECUSANDO IR À MISSA, PACIENTE E SOLITÁRIA A POESIA SE SOLTA NESTE CÉU TRIPEIRO E "PUDICAMENTE FECHA A JANELA PARA QUE AS GAIVOTAS SE AMEM À VONTADE" (como escreve a Irene)

E terminamos tal como começamos, com as palavras  de um POETA:

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis. 
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —

Manuel António Pina


E ainda há lugares  úteis onde a cultura "nasce livre, sem ter senhores a dizer que é por aqui que tem de caminhar" (António).


FERNANDA CARDOSO e LOURDES DOS ANJOS

(ambas as duas com quatro mãos)


1 comentário:

  1. Obrigada pela partilha .Este ano não serei responsabilizada por a antologia ter mais um mau prefácio.Entre doutores sou EU apenas e gosto de SER LIVRE e AUTÊNTICA.Deixo esta responsabilidade a gente mais culta e mais justa.Fica-me o gosto de continuar a ser EU.Obrigada

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