quinta-feira, 24 de setembro de 2015

CIDADE


CIDADE

Encontro-te, não sei quem és, pouco me importa,
prostituta ou rainha,
de braço dado caminho contigo sob o resplendor
das lâmpadas, na avenida.

Vinda não sei donde, negra da senzala
ou loira costureirinha da rua de S. Victor,
vamos amar nas águas-furtadas,
possuir, por um momento ao menos,
os peixes, as florestas, os potros ruivos do sol
e as éguas da lua.

Sob o resplendor feérico das lâmpadas em festa,
quem nos pode impedir?, vamos,
nós sós no mundo por um momento,
nós sós por um momento breve.

Sós, puros e impuros, humanos e divinos,
um momento caminhemos nas fantásticas ruas de coral,
por entre as multidões obscuras.
Sós, a caminho das estradas perpetuamente virgens
na paisagem primitiva,
por um instante breve, que importa?, carregando
em nosso sangue a ânsia e a loucura
das águas originais.

Que ninguém nos impeça, que ninguém nos condene,
ah que ninguém nos fale nas chagas e na sífilis!,
nos fetos, nos miseráveis filhos abortados:
que ninguém nos tome o que não nos pode dar.

Sob as escadas, querida,
vamos em busca das estrelas.
Não terás mais que fechar-me os olhos, e teus seios
mesmo murchos, serão aves, serão frutos;
não terás mais que abrir sobre mim as cataratas
de fogo e desespero que no coração guardas
para que, cego e surdo, como um deus, me suponha
gerando em teu ventre estéril
a raça do futuro.

Vamos, querida, o instante é nosso, e tão belo, tão breve!,
vamos à conquista das florestas perdidas
onde nos perdemos,
cavalguemos os potros do sol, as éguas da lua
e, voando no êxtase, na raiva e na doçura, sejamos ainda uma vez
as aves e os peixes de escamas róseas
no verde mar que fomos.

Não sei donde vens, não sei quem és,
não te perguntarei nada:
prostituta ou rainha,
toma a chave, abre tu a corta.

Papiniano Carlos
in "As Florestas e os Ventos"

lido por Eduardo Roseira

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