A CONSTRUÇÃO DE NÍNIVE
Toca-me o sangue. Peço-te que me
toques
o sangue. Escuta este rumor
dentro do meu peito, esta palavra
enlaçada
a uma pedra que arde dentro da
terra.
Toca-me o sangue. Ordeno que me
toques
o sangue. Este rio que corre nos
meus olhos,
a música silenciosa que o mar vem
entregar
quando os homens regressam do
crepúsculo.
Vê como estou vivo. Vê como sabem a
terra
as minhas palavras. Vê como tenho
ensanguentadas
as minhas palavras perdidas, esses
barcos
que a tempestade teme e as aves
anunciam.
Amo-te. Toca-me o sangue. Sente que
venho
da noite, que é com angústia que
chamo
pelo teu nome, sonho os teus
sonhos,
espero as tuas mãos.
Toca-me o sangue. Toca os fios de
dor
que me rasgam a boca. Toca o fogo
dos meus cabelos.
Toca-me o sangue, a escuridão
em chamas do meu peito.
Sou o que espera na noite. Sou o
que chora
na sombra. Sou o que espera a tua
passagem
silenciosa, os teus quadris ardentes
navegando na noite impassível.
Espero-te. Espero-te. Um perfume
ergue-se
das tuas mãos, um punhal. Toca-me o
sangue.
Sou o que espera na solidão
inquieta
e toma a luz pela luz dos teus
cabelos.
Espero um rio, é uma praia que
espero, o azul
penetrante da tua tristeza secreta,
esse bosque
rugindo um nome e precipitando a
fuga
dos que temem e estão intranquilos.
Toca-me o sangue. Toca o arco de
fogo
que cai das minhas mãos, as sílabas
perdidas na treva
por que uma criança cresce para o
sono
e toca a limpidez de uma lágrima.
A vida vem com a brisa. Um astro
aproxima-se do teu rosto. Uma
canção desprende-se
da árvore de espuma que a sombra
engendra.
Toca-me o sangue. O febril sangue
do meu peito.
Amo-te, mulher desconhecida.
Amo-te.
Amo o jorro de luz da tua boca,
as tuas cálidas palavras, a orla
secreta
dos teus lábios onde o mar vem
beber.
Amo o lume inesperado dos teus
olhos, o teu corpo
nervoso, as tuas mãos perdidas no
vazio.
Amo as caladas cintilações da tua
boca,
a pequena mancha de tule que dança
nos teus olhos.
Como a luminosidade descobre uma
sandália na areia,
o sinal recente de um beijo no
contorno de um rosto,
como um coração de pedra arde
dentro da pedra
e uma nuvem transfigura para sempre
o horizonte, amo-te.
Toca-me o sangue porque te amo.
Toca-me o sangue
porque trago comigo uma palavra
sagrada. Porque estou
inocente. Porque te amo. E uma
ponta de luz
entrega a claridade invisível dos
teus dedos.
Um rumor de água ou de lume vem das
tuas mãos.
Pulsa nas veias da noite o vento do
teu nome.
Um pássaro queima a tristeza
inextinguível.
Um grito, um grito rebenta
finalmente no meu e no teu peito.
Amadeu
Baptista
Lido
por Aurora Gaia
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