ELEGIA
DO REENCONTRO
Diz-me
que sim, que voltarei a vê-los,
queles
de quem fui contemporâneo
e
a quyem amei sem nunca lho ter dito
nem
sequer sinalizado com um gesto
que
fosse de amor e rigorosamente
nada
mais que de amor,
e
quero indemnizar dessa omissão.
Aqueles
que chorei ao ver que o tempo
se
lhes ia escoando e escoou,
como
se escoa a luz numa candeia
por
escassez de azeite e a contragosto.
Dá-me
a palavra de honra de que um dia voltarei
A
ver aqueles que me deram riso
Como
quem dá um doce a uma criança,
E
que deram choro também como quem dá
Um
doce a uma criança.
Eles
eram meus e fizeram-se-me em fumo.
Eles
tinham um invólucro, de que foram
desapossados
à força.
Mas
diz-me que sim, que voltarei a tê-los
capazes
de fogo, sob os dedos dóceis,
não
apenas em memória, cujas asas friáveis
a
simples chama da vela pode invalidar,
mas
em presença, nos seus corpos e naquilo
que
parecia ser uma alma, mas também
às
vezes parecia não o ser.
Diz-me
que ainda uma vez terei aqueles
que
agora, incapacitados em extremo,
desfigurados
em simples lascas de osso,
estão
depositados num promíscuo lugar
entre
esquírolas de madeira e farrapos de galões
(a
negra sumptuária), e tudo são detritos
que
não fazem sentido onde de resto
nenhuma
outra coisa parece fazê-lo — a esses,
de
novo alvoroçados pelo sangue,
diz-me
que sim, que voltarei a vê-los
e
a chamar pelo nome.
Diz-me
que voltarei a encontra-los
e,
apesar de tanta ausência, me reconhecerão
e
todos poremos no rosto indícios de prazer.
E
que todo o tempo será estreito para abraços
—
oh, diz-me que voltarei avaramente
a
tê-los entre os braços.
Inteiros,
a carne re-havida,
o
inverso do pó — diz-me que sim,
que
tornarei a vê-los e a falar-lhes,
a
sentá-los comigo à minha mesa,
e
que não serei eu que me sentarei jamais
à
sua mesa de terra.
Diz-me
que sim, que a fala lhes será
restituída,
e farão dela um uso festivo
e
terão uma palavra para cada coisa
e
calar-se-ão nos momentos de calar.
Sei
que parecerei então pai do meu pai
(que
morreu novo) —
mas
deve haver na tua oficina
alguma
maquilhagem para casos como este.
E,
mesmo que não haja, até há de
ter
graça invertermos os papéis
e
ser a mi há vez de ralhar e aconselhar
e
esmagar entre os dedos uma lágrima
como
eu o vi esmagar algumas vezes
a
pretexto de mim.
Diz-me
que não foram eficazes
as
diligências do tempo para os corroer,
diz-me
que carne e pele triunfarão no dia
do
reencontro e proclamarão
a
sua gloriosa suficiência,
a
sua genuína aptidão
do
único fulcro das alavancas do tempo.
A. M. Pires Cabral
Resumo, a poesia em 2011
Ed DOCUMENTA, Fnac
lido por Miguel Leitão
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