segunda-feira, 26 de maio de 2014

ELEGIA DO REENCONTRO



ELEGIA DO REENCONTRO

Diz-me que sim, que voltarei a vê-los,
queles de quem fui contemporâneo
e a quyem amei sem nunca lho ter dito
nem sequer sinalizado com um gesto
que fosse de amor e rigorosamente
nada mais que de amor,
e quero indemnizar dessa omissão.
Aqueles que chorei ao ver que o tempo
se lhes ia escoando e escoou,
como se escoa a luz numa candeia
por escassez de azeite e a contragosto.

Dá-me a palavra de honra de que um dia voltarei
A ver aqueles que me deram riso
Como quem dá um doce a uma criança,
E que deram choro também como quem dá
Um doce a uma criança.

Eles eram meus e fizeram-se-me em fumo.
Eles tinham um invólucro, de que foram
desapossados à força.
Mas diz-me que sim, que voltarei a tê-los
capazes de fogo, sob os dedos dóceis,
não apenas em memória, cujas asas friáveis
a simples chama da vela pode invalidar,
mas em presença, nos seus corpos e naquilo
que parecia ser uma alma, mas também
às vezes parecia não o ser.

Diz-me que ainda uma vez terei aqueles
que agora, incapacitados em extremo,
desfigurados em simples lascas de osso,
estão depositados num promíscuo lugar
entre esquírolas de madeira e farrapos de galões
(a negra sumptuária), e tudo são detritos
que não fazem sentido onde de resto
nenhuma outra coisa parece fazê-lo — a esses,
de novo alvoroçados pelo sangue,
diz-me que sim, que voltarei a vê-los
e a chamar pelo nome.

Diz-me que voltarei a encontra-los
e, apesar de tanta ausência, me reconhecerão
e todos poremos no rosto indícios de prazer.
E que todo o tempo será estreito para abraços
— oh, diz-me que voltarei avaramente
a tê-los entre os braços.

Inteiros, a carne re-havida,
o inverso do pó — diz-me que sim,
que tornarei a vê-los e a falar-lhes,
a sentá-los comigo à minha mesa,
e que não serei eu que me sentarei jamais
à sua mesa de terra.

Diz-me que sim, que a fala lhes será
restituída, e farão dela um uso festivo
e terão uma palavra para cada coisa
e calar-se-ão nos momentos de calar.

Sei que parecerei então pai do meu pai
(que morreu novo) —
mas deve haver na tua oficina
alguma maquilhagem para casos como este.
E, mesmo que não haja, até há de
ter graça invertermos os papéis
e ser a mi há vez de ralhar e aconselhar
e esmagar entre os dedos uma lágrima
como eu o vi esmagar algumas vezes
a pretexto de mim.

Diz-me que não foram eficazes
as diligências do tempo para os corroer,
diz-me que carne e pele triunfarão no dia
do reencontro e proclamarão
a sua gloriosa suficiência,
a sua genuína aptidão
do único fulcro das alavancas do tempo.

A. M. Pires Cabral
Resumo, a poesia em 2011
Ed DOCUMENTA, Fnac
lido por Miguel Leitão

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