quarta-feira, 23 de abril de 2014

O RIBEIRO E EU



O RIBEIRO E EU

I
Além há um ribeiro. É uma modesta
linha de água que – dir-se-ia – vai passando,
deixando de si sinais inconcludentes.

Engano. Porque, em manhãs como esta,
há uma nevoazinha que se solta dele
e alastra lentamente pelos prados,
destinada a que o vento (quando o há)
a dissipe de todo.

E essa névoa basta para por rodas dentadas
aos solavancos dentro da minha cabeça.

II
Lembra-me as baforadas de vapor
que me saem da boca ao respirar
o ar frio da manhã.

E não cessam aí as semelhanças
entre o ribeiro e eu: ambos movediços,
trazemos de nascença caminhos a cumprir.

Existe contudo uma diferençazinha:

eu trago comigo o ónus dos palpites
e nunca deixo de parafusar
para que raio de lugar me levam os meus passos,
e quem encontrei nesse lugar,
e para que serve afinal esse lugar,
e mesmo se haverá algum lugar –

enquanto o ribeiro, mais sensato,
está-se nas tintas para essas bagatelas,
limita-se a ser água e a correr.

A.M. Pires Cabral
Resumo, a poesia em 2013
Ed DOCUMENTA, Fnac
lido por Miguel Leitão

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