AS
GRUTAS
O
esplendor poisava solene sobre o mar. E — entre as duas pedras erguidas numa
relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do
homem com as coisas é medido — quase me cega a perfeição como um sol olhado de
frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho
tocando o silêncio azul e rápido dos peixes. Porém a beleza não é só solene mas
também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um
grande rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes o imaginara.
Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. E tudo igual a um sonho
extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas
palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda
encosto a minha cara na superfície das águas lisas como um chão.
As
imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá
ficando igual à almadilha da qual os pescadores dizem ser apenas água.
Estarão
as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar?
Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou redondo e
doirado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do
ar e do mar, no alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do
mar. Desertas surgem as pequenas praias. Um fio invisível de deslumbrado
espanto me guia de gruta em gruta. Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror
de penetrar na habitação secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos
eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do
que o meu próprio pensamento. Deslizam os meus ombros cercados de água e
plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto paira
roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam céu e terra. As anémonas
rodeiam a grande sala de água onde os meus dedos tocam a areia rosada do fundo.
E abro bem os olhos no silêncio líquido e verde onde rápidos, rápidos fogem de
mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e desenham a claridade dos espaços
matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água. Esta manhã é igual ao
princípio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se viu.
O
meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam.
E
eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são águas
e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste
silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de espanto e de
medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge
em suas portas.
Mas
já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e limpa
como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de glória matinal.
Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar de gratidão
com a cara encostada contra as pedras.
Sophia de Mello Breyner Andresen
in “LIVRO SEXTO”
(Moraes Ed, 1962) e OBRA POÉTICA (Caminho, 2010;
Assírio & Alvim, 2015)
Lido por Manuela Caldeira
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