sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

NATAL


NATAL

Deito-me à sombra da árvore sem sombra - a árvore
cujas raízes nascem da infância - e é natal, e
nunca mais chega a meia-noite
dessa noite sem fim. Rezo pelas
mais obscuras incertezas, pelas almas que
hesitam nas encruzilhadas, pelos vagabundos que
esperam a meia-noite para se sentarem à porta da igreja,
na única noite em que têm onde se sentar. Aprendi
com eles o destino dos passos humanos, a ausência
de deus nos caminhos do mundo, o silêncio
do céu nas noites sem lua. Joguei com as suas cartas
enquanto a missa não acabava, aproveitando o calor
que saía pela porta da igreja, e ouvindo o refrão
dos mortos no cemitério do adro. Aceitei
a sua batota - por essas almas que nos ouviam
enquanto o jogo mudava de parceiros. Paguei
o dinheiro que me exigiam à entrada, para que
não tivesse de os acompanhar na barca do tempo; e
vi-os fazerem-me adeus, antes que o esquecimento
os vestisse de obscuridade.
E conto, agora, as bolas douradas que enfeitam
a árvore - sem nunca chegar ao fim. Conto-as, no entanto,
enquanto as vou colhendo, como se fosse o tempo dos
frutos. Uma a uma, essas bolas amontoam-se na minha memória
dando um rosto a cada um desses que batiam
à porta da noite, pedindo o pão que sobrara do natal. Ouço-o
baterem, agora, à porta do poema; distribuo por eles
cada uma destas palavras, para que as levem consigo - e
eles deixam-me o pó, a cera de velas consumidas até ao fim
da sua eternidade, o refrão dos mortos em resposta
ao latim do padre. Pergunto-lhes o caminho para esse
adro da infância; peco-lhes que me devolvam a moeda que
lhes emprestei para pagarem ao barqueiro. Desaparecem,
um a um, sem nada me dizerem.
Rezem por mim!, digo-lhes. E eles não me ouvem,
como se o seu destino fosse o da sombra desta árvore
sem sombra, de raízes na infância, cujos frutos conto,
um a um, enquanto espero a meia-noite.

Nuno Júdice
Lido por Manuela Caldeira

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