NATAL
Deito-me à sombra da
árvore sem sombra - a árvore
cujas raízes nascem da
infância - e é natal, e
nunca mais chega a
meia-noite
dessa noite sem fim. Rezo
pelas
mais obscuras incertezas,
pelas almas que
hesitam nas
encruzilhadas, pelos vagabundos que
esperam a meia-noite para
se sentarem à porta da igreja,
na única noite em que têm
onde se sentar. Aprendi
com eles o destino dos
passos humanos, a ausência
de deus nos caminhos do
mundo, o silêncio
do céu nas noites sem
lua. Joguei com as suas cartas
enquanto a missa não
acabava, aproveitando o calor
que saía pela porta da
igreja, e ouvindo o refrão
dos mortos no cemitério
do adro. Aceitei
a sua batota - por essas
almas que nos ouviam
enquanto o jogo mudava de
parceiros. Paguei
o dinheiro que me exigiam
à entrada, para que
não tivesse de os
acompanhar na barca do tempo; e
vi-os fazerem-me adeus,
antes que o esquecimento
os vestisse de
obscuridade.
E conto, agora, as bolas
douradas que enfeitam
a árvore - sem nunca
chegar ao fim. Conto-as, no entanto,
enquanto as vou colhendo,
como se fosse o tempo dos
frutos. Uma a uma, essas
bolas amontoam-se na minha memória
dando um rosto a cada um
desses que batiam
à porta da noite, pedindo
o pão que sobrara do natal. Ouço-o
baterem, agora, à porta
do poema; distribuo por eles
cada uma destas palavras,
para que as levem consigo - e
eles deixam-me o pó, a
cera de velas consumidas até ao fim
da sua eternidade, o
refrão dos mortos em resposta
ao latim do padre.
Pergunto-lhes o caminho para esse
adro da infância;
peco-lhes que me devolvam a moeda que
lhes emprestei para
pagarem ao barqueiro. Desaparecem,
um a um, sem nada me
dizerem.
Rezem por mim!,
digo-lhes. E eles não me ouvem,
como se o seu destino
fosse o da sombra desta árvore
sem sombra, de raízes na
infância, cujos frutos conto,
um a um, enquanto espero
a meia-noite.
Nuno Júdice
Lido por
Manuela Caldeira
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