COMO
SE FAZ UM MONSTRO
I
Ele
era nesse tempo uma criança loira
Vivendo
na abundância agreste da lavoira,
Ao
vento, à chuva, ao sol, pastoreando os gados,
Deitando-se
ao luar nas pedras dos eirados,
Atravessando
à noite os solitários montes,
Dormindo
a boa sesta ao pé das claras fontes,
Trepando
aos pinheirais, às fragas, aos barrancos,
No
rijo e negro pão cravando os dentes brancos,
Radioso
como a aurora e bom como a alegria.
Quando
no azul do céu cantava a cotovia,
Aos
primeiros clarões vibrantes da alvorada
Transportava
ao casebre o leite da manada,
Acordando,
a assobiar e a rir pelos caminhos,
Os
lebréus nos portais e as aves nos seus ninhos.
E
à tarde quando o Sol, extraordinário Rubens,
Na
fantasmagoria esplêndida das nuvens,
Colorista
febril, lança, desfaz, derrama
O
topázio, o rubi, a prata, o oiro, a chama,
Ele
ia então sozinho, alegre, intemerato,
Conduzindo
a beber ao trémulo regato,
A
golpes de verdasca e gritos estridentes,
Num
ruidoso tropel os grandes bois pacientes.
O
seu olhar azul de limpidez virtuosa,
Onde
brilhava a audácia heróica e valorosa,
A
candura infantil e a inteligência rara,
O
timbre da sua voz imperiosa e clara,
A
linha do seu corpo altivamente recta,
Tudo
lhe dava o ar soberbo dum atleta
Em
miniatura.
II
Um
dia o pai, um bravo aldeão,
Chamou-o
ao pé de si, e disse-lhe:«João:
À
força de trabalho e à força de canseiras,
A
moirejar no monte e a levar gado às feiras,
Consegui
ajuntar ao canto do baú
Alguns
pintos. Vocês são dois rapazes; tu,
Além
de ser mais novo, és mais inteligente.
Vou
botar-te ao latim; quero fazer-te gente.
Hás-de
me dar ainda um grande pregador.
Hoje
padre é melhor talvez que ser doutor.
Aquilo
é grande vida; é vida regalada.
Olha,
sabes que mais? manda ao diabo a enxada.
Aquilo
é que é vidinha! aquilo é que é descanso!
Arrecada-se
a côngrua, engrola-se o ripanço,
Arranja-se
um sermão aí com quatro tretas,
Vai-se
escorropichando o vinho das galhetas,
E
a missa seis vinténs e doze os baptizados.
Depois,
independente e sem nenhuns cuidados!
Olha,
João, vê tu o nosso padre-cura:
É,
sem tirar nem pôr, uma cavalgadura,
Vi-o
chegar aqui mais roto que os ciganos;
Pois
tem feito um casão em meia dúzia d'anos.
Isto
é desenganar; padres sabem-na toda...
É
o sermão, é a missa, é o enterro, é a boda.
É
pinga da melhor, e tudo quanto há!
Quando
o abade morrer hás-de vir tu p'ra cá.
Despacha-te
o doutor nas cortes; quando não
Votamos
contra ele, e foi-se-lhe a eleição.
Mas
que é isso, rapaz? Nada de choradeira!
É
tratar da merenda, e quinta ou sexta-feira
Toca
pró seminário. Eu quero ir para a cova
Só
depois de te ouvir cantar a missa nova».
III
Numa
tarde d'Outono, a sonolento trote
Um
macho conduzia em cima do albardão,
Já
coluna da Igreja, o novo sacerdote,
O
muitíssimo ilustre e digno padre João.
Ao
entrarem na aldeia os dois irracionais,
Dos
foguetes ao grande e jubiloso estrépito
Um
velho recebeu nos braços paternais,
Em
vez do alegre filho, um monstro já decrépito
Que
acabava de vir das jaulas clericais.
Que
transfiguração! Que radical mudança!
Em
lugar da inocente, angélica criança,
Voltava
um chimpanzé, estúpido e bisonho,
Com
o ar de quem anda alucinadamente
Preso
nas espirais diabólicas dum sonho.
Seu
corpo juvenil, robusto e florescente,
Vergava
para o chão, exausto de cansaço:
Os
dogmas são de bronze, e a lã duma batina
Já
vai pesando mais que as armaduras d'aço.
A
ignorância profunda, a estupidez suína,
A
luxúria d'igreja, ardente, clandestina,
O
remorso, o terror, o fanatismo inquieto,
Tudo
isto perpassava em turbilhão confuso
Na
atonia cruel daquele hediondo aspecto,
Na
morna fixidez daquele olhar obtuso.
Metida
nas prisões escuras de Loiola,
A
sua alma infantil, não tendo luz nem ar,
Foi
como os rouxinóis, que dentro da gaiola
Perdem
toda a alegria e morrem sem cantar.
IV
Como
ninguém ignora, os sórdidos palhaços
Compram,
roubam às mães as loiras criancinhas,
Torcem-lhes
o pescoço, as mãos, os pés, os braços,
Transformam-lhes
num junco elástico as espinhas,
E
exibem-nas depois nos palcos das barracas,
Dando
saltos mortais e devorando facas
Ante
o espanto imbecil da ingénua multidão;
E
para lhes cobrir a lividez plangente
Costumam-lhes
pintar carnavalescamente
Na
face de alvaiade, um rir de vermelhão.
Também
o jesuitismo hipócrita-romano,
Palhaço
clerical, anda pelos caminhos
A
comprar, a furtar, assim como um cigano,
As
crianças às mães, os rouxinóis aos ninhos.
Vão
levá-las depois ao negro seminário,
Às
terríveis galés, ao sacro matadoiro,
E
escondem-nas da luz, assim como o usurário
Esconde
também dela os seus punhados d'oiro.
Dentro
da estupidez e da superstição,
Casamata
da fé, guardam-lhes a razão,
A
análise, esse forte e venenoso fluido,
Que,
andando em liberdade, ao mínimo descuido
Poderia
estoirar com trágica explosão.
O
que o palhaço faz ao corpo da criança,
Fazem-lho
à alma, até que dela reste enfim,
Em
lugar do histrião que nas barracas dança,
O
pobre missionário, o inútil manequim,
O
histrião que nos prega a bem-aventurança
A
murros de missal e a roncos de latim.
As
almas infantis são brandas como a neve,
São
pérolas de leite em urnas virginais:
Tudo
quanto se grava e quanto ali se escreve,
Cristaliza
em seguida e não se apaga mais.
Desta
forma, consegue o astucioso clero
Transformar,
de repente, uma criança loira
Num
pássaro nocturno estúpido e sincero.
É
abrir-lhe na cabeça a golpes de tesoira
A
marca industrial do fabricante — um zero!
Guerra
Junqueiro
lido em conjunto por Adolfo Castelbranco, Dionísio
Dinis, Goreti Dias e José Efe
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